Tudo aconteceu na hora de irmos embora. Não sei se vocês lembram, mas eu disse que saímos na segunda-feira, às 7h30 da manhã. Tínhamos aquela idéia de que íamos enfim ver o efeito do trem rápido, mas tínhamos esquecido do horário em que o sol nasce, etc., etc., etc.
Acordamos muito cedo. Íamos de metrô do hotel até a estação do trem (já tínhamos feito isso na ida e foi bem tranqüilo) e sabíamos que era pelo menos meia hora até chegar ao local. Depois, tinha o tempo de achar o lugar de embarque, encontrar o trem, o vagão, essas coisas. Portanto, acordamos, juntamos as coisas e saímos. O hotel em que estávamos tinha uma máquina de café na portaria, mas o Vidal não liga muito pra café da manhã, meu pai também passa bem sem ele, o Felipe toma mamadeira (ainda não tem máquina de mamadeira expressa) e eu e a minha mãe tínhamos um sonho de infância: fazer uma refeição em um trem. Deixamos o café pra lá e saímos. Apesar de termos acordado bem cedo, sempre tem um atrasozinho e estávamos com o tempo na estica.
Na verdade, estávamos muito em cima da hora. Nos desembestamos pela rua: o Vidal carregando o Felipe (que tinha dormido de novo), meu pai e minha mãe carregando as malas e eu carregando a Ana Luíza na barriga. Só pra lembrar, isso aconteceu no dia 15 de dezembro e ela nasceu no dia 26. O barrigão estava gigante!
Eu já tinha estudado o mapa do metrô e o caminho era fácil: pegar a linha cinco direção Place d'Italie. Descer na Gare de L'Est e pegar a linha quatro direção Porte d'Orléans até a Gare de Montparnasse. Tranqüilo. Nada mais simples. Moleza mesmo... Se não fosse o horário apertado e as "cargas" de cada um...
Parênteses. Acho que o metrô de Paris é um dos maiores do mundo. É uma cidade embaixo da cidade. Aliás, o que mais se conhece de Paris quando se vai pra lá é o metrô. A gente anda kilômetros (sem nenhum exagero nisso) embaixo da terra por corredores e mais corredores. Além deles, tem as escadas (nem sempre rolantes) e, pra completar, o cheiro! Dá pra entender porque os franceses se especializaram em perfumes. Os aromas vão variando: num corredor, xixi. No outro, cocô. Mais à frente, enxofre. O ar pesado. Quando entra algum ar, é um vento e é gelado! Quando você acha que não vai suportar e que vai acabar vomitando, chega num outro corredor e a coisa fica pior!
Descemos na primeira estação e procuramos a placa: linha 4 direção Porte d'Orléans. "Por ali!". Fomos. Andando meio rapidinho pra não correr riscos. Subimos uma escada (enorme). Um corredor (gigante). "Melhor apressar um pouco o passo". Mais uma escada (imensa), outro corredor (infinito). Escada de novo (agora pra baixo). Esteira! Outra escada. A nossa mala tinha rodinhas, mas o cabo é meio curto e a gente tem de andar curvado. Melhor carregar. Meu pai e minha mãe na frente. O Vidal com o Felipe no meio e eu, resfolegando, atrás. Bem atrás. MUITO atrás! "Tenho de alcançar, eu vou conseguir..." A esteira teria sido uma maravilha se a gente não estivesse correndo sobre ela pra ganhar tempo. "Puxa! No mapa parecia que a gente ia pegar outro metrô e não que ia ter de ir a pé!". Enfim, chegamos. Felizmente não estava entupido. Conseguimos sentar! Ufa!
Chegamos na estação. Mais uma caminhada, mais escadas, mais corredores. As malas, o Felipe dormindo... Ai, o peso da barriga... "Cadê o portão de embarque? Por ali! Péraí! Tem de carimbar os bilhetes. Aí, tudo bem. Vamos. Qual é o trem? É aquele!"
Outro parênteses. Os trens. São enormes! Vagões compridos, uns atrás dos outros. O nosso era o nove. Dentro, os bancos são metade de frente pra estrada, metade de costas. Exatamente no meio ficam quatro bancos de frente uns para os outros, dois a dois, com uma mesinha no meio. Na ida eu tinha visto que esses seriam os nossos. Pelo menos ficaríamos num lugar legal. Isso se a gente chegasse ao vagão!
"Nosso vagão é o nove. Que número de vagão está aí?". Quatro. Cinco. "Ai, não vai dar tempo." Seis. Sete. "Não agüento mais! Vou parar aqui, vocês vão sem mim." Oito. Nove! O Vidal pergunta: "É esse mesmo?". E eu "Você não viu o número na porta? Entra!" Tudo bem. Deu tempo. Todo mundo descabelado (menos o meu pai... a calvície tem suas vantagens...), ofegante e com uma expressão de cansaço no rosto. Eu e a minha mãe, não. Nós tínhamos também uma expressão de fome!
Quando chegamos aos nossos lugares, vimos uma mocinha sentada. Que abuso! Eu, cheia de cansaço, de fome e profundamente indignada, esbanjei todo o meu francês:
- Sinto muito, mas a senhorita está no lugar errado.
- O quê?
- Esses lugares. São nossos. Veja os bilhetes. E, superior, mostrei os números das poltronas nos bilhetes. Não queria nem dar tempo pra muita discussão. "Pode guardar as malas aí".
- Não é possível! Ela confere a própria passagem.
Eu olho e digo, triunfante:
- Veja, você se enganou de vagão. Seu lugar é no vagão dez. Este aqui é o nove.
Ela olha confusa para o colega que estava no banco de trás. Ele se aproxima.
- Qual é o problema?
- Ela disse que estamos no vagão errado. Que vagão é este?
Aí, para meu profundo desespero, ele responde:
- O dez.
Eu:
- O que? "Quem foi que fez sumir o chão do trem?" Como assim, o dez? "Alguém abriu a janela? Fiquei gelada de repente..."
Olhei para a porta de comunicação entre os vagões. Um enorme número dez faiscava como neon!
- Ahn... é... pois é... é o dez... que coisa, né?... excusez moi e etc. e tal. O Vidal me fuzilando com os olhos. "Bem, vamos pra lá, recolhe as malas, pega o Felipe. Eu estava correndo muito. Me enganei, e daí?"
Chegamos ao nove. Era um vagão menor. Não tinha os bancos de frente uns para os outros. Mais uma decepção. Tudo bem. Pelo menos ainda tinha o sonho a ser realizado: o café da manhã no trem. Começa a viagem. Pontualíssima.
"Senhores passageiros, bem vindos a bordo. Informamos que este trem tem dois vagões-restaurante: o 6 e o 12. Além deles há distribuidores de bebidas quentes e refrigerantes nos vagões 3 e 15". Viro para minha mãe e falo: "Vamos esperar o rapaz conferir as passagens e vamos, tá? Estou morrendo de fome!". Pegamos os espelhinhos na bolsa pra dar uma ajeitada no visual. Refeição no trem não dá pra ser de qualquer jeito. E depois, tinha as fotos!
O rapaz não chegava. Decidimos ir assim mesmo. Saímos do vagão 9 em direção ao 12. Tínhamos de passar pelo vagão 10, fazer o que... A mocinha estava lá. Respirei fundo, empinei o nariz, coloquei o máximo de dignidade possível no rosto e fui. Depois do vagão 10 vinha um meio-vagão e fim! O trem é dividido em duas partes que não se comunicam. Por isso dois vagões-restaurante. Um em cada metade. O jeito é voltar.
Passamos de novo pelo 10. A mocinha ainda estava lá. Acho que estava dormindo, não sei. Passei firme, o queixo lá em cima.
Atravessamos o vagão 8. No fim dele, um grupo de crianças amontoadas no compartimento de bagagem.
- A senhora não pode ir por aí.
"Como assim?". Abri a porta e um segurança veio correndo:
- O vidro do vagão acabou de trincar, Senhora. Ninguém pode passar por aqui!
Estávamos cansadas, com fome e, agora, ilhadas! Olhei pra minha mãe. Traduzi rapidamente o que ela já tinha percebido pela minha expressão desolada. Nada de foto-no-café-da-manhã-no-trem... Pensando bem, nada de café-da-manhã-no-trem... Aliás, nada de café da manhã!!! Fizemos meia-volta, os queixos no peito e os estômagos nas costas. Ainda bem que o barulho do trem disfarçava os roncos da barriga.
Voltamos para os nossos lugares, desconsoladas. Quem sabe na próxima?
O bom é que pudemos ver o nascer do sol com calma. Quando ele apareceu, o trem já andava devagar. Até deu pra tirar uma foto:
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