sexta-feira, fevereiro 13, 2004

Eu estava relendo o texto sobre nosso passeio a Paris e lembrei de mais uma coisa. Mais um "micão" que meu subconsciente tinha escondido nas suas câmaras mais escuras. Mas, como estamos só entre amigos, isso aqui é, no fim das contas, a nossa memória, provavelmente não tem mais muita gente acompanhando mesmo... Vou compartilhar mais esse vexame... O texto é comprido, quem estiver com preguiça pode desistir agora mesmo!

Tudo aconteceu na hora de irmos embora. Não sei se vocês lembram, mas eu disse que saímos na segunda-feira, às 7h30 da manhã. Tínhamos aquela idéia de que íamos enfim ver o efeito do trem rápido, mas tínhamos esquecido do horário em que o sol nasce, etc., etc., etc.

Acordamos muito cedo. Íamos de metrô do hotel até a estação do trem (já tínhamos feito isso na ida e foi bem tranqüilo) e sabíamos que era pelo menos meia hora até chegar ao local. Depois, tinha o tempo de achar o lugar de embarque, encontrar o trem, o vagão, essas coisas. Portanto, acordamos, juntamos as coisas e saímos. O hotel em que estávamos tinha uma máquina de café na portaria, mas o Vidal não liga muito pra café da manhã, meu pai também passa bem sem ele, o Felipe toma mamadeira (ainda não tem máquina de mamadeira expressa) e eu e a minha mãe tínhamos um sonho de infância: fazer uma refeição em um trem. Deixamos o café pra lá e saímos. Apesar de termos acordado bem cedo, sempre tem um atrasozinho e estávamos com o tempo na estica.

Na verdade, estávamos muito em cima da hora. Nos desembestamos pela rua: o Vidal carregando o Felipe (que tinha dormido de novo), meu pai e minha mãe carregando as malas e eu carregando a Ana Luíza na barriga. Só pra lembrar, isso aconteceu no dia 15 de dezembro e ela nasceu no dia 26. O barrigão estava gigante!

Eu já tinha estudado o mapa do metrô e o caminho era fácil: pegar a linha cinco direção Place d'Italie. Descer na Gare de L'Est e pegar a linha quatro direção Porte d'Orléans até a Gare de Montparnasse. Tranqüilo. Nada mais simples. Moleza mesmo... Se não fosse o horário apertado e as "cargas" de cada um...

Parênteses. Acho que o metrô de Paris é um dos maiores do mundo. É uma cidade embaixo da cidade. Aliás, o que mais se conhece de Paris quando se vai pra lá é o metrô. A gente anda kilômetros (sem nenhum exagero nisso) embaixo da terra por corredores e mais corredores. Além deles, tem as escadas (nem sempre rolantes) e, pra completar, o cheiro! Dá pra entender porque os franceses se especializaram em perfumes. Os aromas vão variando: num corredor, xixi. No outro, cocô. Mais à frente, enxofre. O ar pesado. Quando entra algum ar, é um vento e é gelado! Quando você acha que não vai suportar e que vai acabar vomitando, chega num outro corredor e a coisa fica pior!

Descemos na primeira estação e procuramos a placa: linha 4 direção Porte d'Orléans. "Por ali!". Fomos. Andando meio rapidinho pra não correr riscos. Subimos uma escada (enorme). Um corredor (gigante). "Melhor apressar um pouco o passo". Mais uma escada (imensa), outro corredor (infinito). Escada de novo (agora pra baixo). Esteira! Outra escada. A nossa mala tinha rodinhas, mas o cabo é meio curto e a gente tem de andar curvado. Melhor carregar. Meu pai e minha mãe na frente. O Vidal com o Felipe no meio e eu, resfolegando, atrás. Bem atrás. MUITO atrás! "Tenho de alcançar, eu vou conseguir..." A esteira teria sido uma maravilha se a gente não estivesse correndo sobre ela pra ganhar tempo. "Puxa! No mapa parecia que a gente ia pegar outro metrô e não que ia ter de ir a pé!". Enfim, chegamos. Felizmente não estava entupido. Conseguimos sentar! Ufa!

Chegamos na estação. Mais uma caminhada, mais escadas, mais corredores. As malas, o Felipe dormindo... Ai, o peso da barriga... "Cadê o portão de embarque? Por ali! Péraí! Tem de carimbar os bilhetes. Aí, tudo bem. Vamos. Qual é o trem? É aquele!"

Outro parênteses. Os trens. São enormes! Vagões compridos, uns atrás dos outros. O nosso era o nove. Dentro, os bancos são metade de frente pra estrada, metade de costas. Exatamente no meio ficam quatro bancos de frente uns para os outros, dois a dois, com uma mesinha no meio. Na ida eu tinha visto que esses seriam os nossos. Pelo menos ficaríamos num lugar legal. Isso se a gente chegasse ao vagão!

"Nosso vagão é o nove. Que número de vagão está aí?". Quatro. Cinco. "Ai, não vai dar tempo." Seis. Sete. "Não agüento mais! Vou parar aqui, vocês vão sem mim." Oito. Nove! O Vidal pergunta: "É esse mesmo?". E eu "Você não viu o número na porta? Entra!" Tudo bem. Deu tempo. Todo mundo descabelado (menos o meu pai... a calvície tem suas vantagens...), ofegante e com uma expressão de cansaço no rosto. Eu e a minha mãe, não. Nós tínhamos também uma expressão de fome!

Quando chegamos aos nossos lugares, vimos uma mocinha sentada. Que abuso! Eu, cheia de cansaço, de fome e profundamente indignada, esbanjei todo o meu francês:

- Sinto muito, mas a senhorita está no lugar errado.

- O quê?

- Esses lugares. São nossos. Veja os bilhetes. E, superior, mostrei os números das poltronas nos bilhetes. Não queria nem dar tempo pra muita discussão. "Pode guardar as malas aí".

- Não é possível! Ela confere a própria passagem.

Eu olho e digo, triunfante:

- Veja, você se enganou de vagão. Seu lugar é no vagão dez. Este aqui é o nove.

Ela olha confusa para o colega que estava no banco de trás. Ele se aproxima.

- Qual é o problema?

- Ela disse que estamos no vagão errado. Que vagão é este?

Aí, para meu profundo desespero, ele responde:

- O dez.

Eu:

- O que? "Quem foi que fez sumir o chão do trem?" Como assim, o dez? "Alguém abriu a janela? Fiquei gelada de repente..."

Olhei para a porta de comunicação entre os vagões. Um enorme número dez faiscava como neon!

- Ahn... é... pois é... é o dez... que coisa, né?... excusez moi e etc. e tal. O Vidal me fuzilando com os olhos. "Bem, vamos pra lá, recolhe as malas, pega o Felipe. Eu estava correndo muito. Me enganei, e daí?"

Chegamos ao nove. Era um vagão menor. Não tinha os bancos de frente uns para os outros. Mais uma decepção. Tudo bem. Pelo menos ainda tinha o sonho a ser realizado: o café da manhã no trem. Começa a viagem. Pontualíssima.

"Senhores passageiros, bem vindos a bordo. Informamos que este trem tem dois vagões-restaurante: o 6 e o 12. Além deles há distribuidores de bebidas quentes e refrigerantes nos vagões 3 e 15". Viro para minha mãe e falo: "Vamos esperar o rapaz conferir as passagens e vamos, tá? Estou morrendo de fome!". Pegamos os espelhinhos na bolsa pra dar uma ajeitada no visual. Refeição no trem não dá pra ser de qualquer jeito. E depois, tinha as fotos!

O rapaz não chegava. Decidimos ir assim mesmo. Saímos do vagão 9 em direção ao 12. Tínhamos de passar pelo vagão 10, fazer o que... A mocinha estava lá. Respirei fundo, empinei o nariz, coloquei o máximo de dignidade possível no rosto e fui. Depois do vagão 10 vinha um meio-vagão e fim! O trem é dividido em duas partes que não se comunicam. Por isso dois vagões-restaurante. Um em cada metade. O jeito é voltar.

Passamos de novo pelo 10. A mocinha ainda estava lá. Acho que estava dormindo, não sei. Passei firme, o queixo lá em cima.

Atravessamos o vagão 8. No fim dele, um grupo de crianças amontoadas no compartimento de bagagem.

- A senhora não pode ir por aí.

"Como assim?". Abri a porta e um segurança veio correndo:

- O vidro do vagão acabou de trincar, Senhora. Ninguém pode passar por aqui!

Estávamos cansadas, com fome e, agora, ilhadas! Olhei pra minha mãe. Traduzi rapidamente o que ela já tinha percebido pela minha expressão desolada. Nada de foto-no-café-da-manhã-no-trem... Pensando bem, nada de café-da-manhã-no-trem... Aliás, nada de café da manhã!!! Fizemos meia-volta, os queixos no peito e os estômagos nas costas. Ainda bem que o barulho do trem disfarçava os roncos da barriga.

Voltamos para os nossos lugares, desconsoladas. Quem sabe na próxima?

O bom é que pudemos ver o nascer do sol com calma. Quando ele apareceu, o trem já andava devagar. Até deu pra tirar uma foto:


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