sexta-feira, março 26, 2004

Três meses da Ana Luíza! Dia de foto:


Ela continua ótima. Como vocês podem ver, ela é super risonha, continua tranqüila, dorme a noite toda... Como toda criança, dá os seus "pitis" de vez em quando, é verdade, mas o melhor de tudo é que está ainda só no leite da mamãe! E engordando! Está com as coxinhas gordinhas e fofinhas (herança materna, né?). E eu continuo achando que dessa vez tem chance de eu ter uma criança parecida comigo dentro desta casa. Eu preciso disso! Vou contar um episódio antigo e tenho certeza de que todo mundo vai me dar razão!

O Felipe, vocês sabem, é a cara do Vidal. Tem fotos do Vidal quando bebê que poderiam ser colocadas no álbum do Felipe e vocês só iam achar estranho o tom amarelado das ditas cujas (o que denuncia a idade avançada do meu consorte)! Pois bem, eu sempre ficava meio injuriada porque, afinal de contas, fui eu quem carregou os nove meses e, além disso, tem os enjôos, a dor nas costas, a azia, a insônia, etc. etc. etc. e o bichinho era o pai escrito. Um dia, quando o Felipe era só um pouco maior do que a Ana Luíza é hoje, eu estava trocando a fralda dele e falei pro Vidal:

- Olha só! Parece que o Felipe tem celulite no bumbum!

E o Vidal respondeu:

- Que bom, né? Você não queria que ele tivesse alguma coisa parecida com você?

Dá pra acreditar?!!!! Vejam que ser humano bondoso e caridoso eu sou: além de não "dar nas fuças" do Vidal, eu ainda continuei casada!!!! Eu tenho ou não tenho razão de querer uma filha que tenha o rosto parecido com o meu?!

Outro assunto (porque essa coisa de celulite eu quero esquecer!)...

Amanhã começa o horário de verão aqui. Isso quer dizer que ficaremos com cinco horas de diferença até o final do mês de outubro. Para encontros no Messenger, então, vocês podem ter como horário limite para nos encontrar algo em torno de seis da tarde. Depois disso já fica mais difícil, principalmente durante a semana.

Mais um assunto... (a coisa está variada hoje!)

Vejam vocês como está ficando podre de chique este blog! Agora, no final de cada texto que eu publico aqui existem dois links: Comentários e Trackback.

O primeiro serve para vocês deixarem aqui mensagens de apoio, de saudade, de incentivo, ou fazerem críticas, sugestões e, principalmente, elogios (o ego precisa dessas coisas, sabe...). Basta clicar o link e aparecerá uma janelinha com espaço para vocês digitarem o que quiserem. Mas atenção! Tudo o que vocês escreverem vai ficar visível para qualquer pessoa que acesse o blog, certo? Por isso, caso alguém queira contar um segredo, falar mal de alguém, fazer uma confidência, é melhor evitar esse espaço. Para mensagens desse tipo, continuem me enviando e-mails, certo? Aha! Aposto que deixei um monte de gente com a pulga atrás da orelha pensando que estou sabendo de muitos segredos e fofocas, né? Vou vender caro essas informações depois! Precisamos de dinheiro para as passagens de volta, né?

O segundo link (Trackback) eu ainda não entendi direito para o que serve! O dia em que eu souber conto para vocês! Tem alguma coisa a ver com outro blog que faça referência ao meu blog... Sei lá! Não é nada de importante.

E, para terminar...

Amanhã tem Carnaval na escola do Felipe. É isso mesmo! Aqui eles festejam o Carnaval no meio da Quaresma e não me perguntem o porquê disso! Já teve desfile no centro de Nantes há umas duas semanas. Gostaríamos de ter ido, mas não deu. Amanhã tem Carnaval no centro de Saint-Sébastien e na escola. É claro que o Felipe vai vestido de Power Rangers, né? Há dias que ele está na maior ansiedade por causa desse evento. Hoje ele nos acordou às cinco da manhã:

- Papai...

- Rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr....

- Mamãe...

- Ahnnnn...

- MA-MA-NHE!

- Ahn... Que foi?

- Depois desse dia (isso quer dizer amanhã), é o dia de eu ir de Power Rangers na escola!

- Ai Felipe, são cinco horas da manhã! Volta a dormir querido.

...

- Mamãe...

- Ahnnnnnnn...

- Quero um mamá...

- Buáaaaaaaaaaaa....

quinta-feira, março 25, 2004

Infelizmente, um assunto sério hoje. Vocês devem ter visto nos jornais que foi encontrada mais uma bomba em uma linha de trem aqui na França. Imaginamos que isso pode ter preocupado amigos e família que estão aí no Brasil, essa terra abençoada.

É verdade, e foi a segunda bomba encontrada nessas condições nas últimas semanas. Os possíveis responsáveis fazem parte de um grupo chamado AZF, do qual a gente não sabe muito e, pelo que pudemos ler rapidamente, nem mesmo os franceses têm pleno conhecimento das reivindicações.

Não vamos negar que os acontecimentos desse mês de março nos deixaram apreensivos, assim como todos os outros habitantes da Europa. É verdade que a França estava originalmente fora da lista dos países-alvo da Al-Qaeda, mas, como disse o presidente francês logo depois dos atentados de Madri: "Ninguém está a salvo". Um fato, particularmente, deixa a França vulnerável: recentemente foi aprovada uma lei que proíbe o uso de qualquer coisa (seja roupa ou acessório) de origem religiosa nas escolas públicas francesas. Os maiores protestos quanto à discussão e aprovação dessa lei vieram das mulheres muçulmanas que não podem mais usar o lenço sobre os cabelos. Isso pode ser suficiente para que um grupo de descontentes faça estragos por aqui, em sinal de protesto contra essa lei.

É uma pena que o mundo esteja dessa forma, mas, se está assim é por culpa única e exclusiva dos próprios humanos. Não houve nenhuma invasão extra-terrestre que viesse a ocasionar todas essas turbulências. Portanto, se os humanos causaram esse estado de coisas, eles próprios (ou seja, nós todos) devem resolver essa situação. Como? Não faço a mínima idéia! O que fico imaginando é que deve ter ocorrido alguma mudança genética nesse grupo de terroristas, porque eles perderam completamente o instinto de sobrevivência, inerente a qualquer pessoa. Li em uma revista uma coisa que me impressionou bastante. Em cartas enviadas logo depois dos vários atentados que eles cometeram havia uma frase: "Vocês querem a vida, nós queremos a morte". Como se defender de pessoas assim? Pessoas que estão dispostas a tudo, inclusive a morrer?

Dá uma revolta enorme ver o que essas pessoas fazem com quem não tem absolutamente nada a ver com o problema deles. Mas, infelizmente, eles perceberam que dessa forma conseguem se fazer notar. Fico tentando não alimentar sentimentos ruins dentro de mim, já que é isso que faz com que o círculo seja "vicioso" e não "virtuoso". É difícil, mas acho que até consigo às vezes. É um exercício constante de racionalidade, porque a raiva que dá ao ver as cenas de atentados é enorme.

Diante disso tudo, começamos a elaborar estratégias para nos sentirmos mais seguros. Em primeiro lugar, gostaria de dizer que não vivemos de tão perto essa ameaça. A vida continua normalmente e não temos sinais visíveis de que estamos em guerra. Sim, porque esta é exatamente a situação: estamos em guerra. Uma guerra mundial. Diferente daquela que estudamos nos livros de história, mas uma guerra assim mesmo. Pelo que vemos nos telejornais, a França parece estar bem preparada para situações de atentado, principalmente no sentido de minimizar as chances de que eles aconteçam. Existe um plano de vigilância anti-terrorista chamado "Vigipirate", que está a todo vapor já faz alguns dias. Justamente por causa desse plano é que essas bombas foram encontradas.

De nossa parte, decidimos tomar também algumas providências. Nada de muito especial, mas, mesmo sabendo que não se pode estar totalmente livre de uma fatalidade, sempre é bom se precaver. Já que, aparentemente, esses grupos terroristas têm a intenção de fazer sempre "mega produções", no sentido de atingir sempre um grande número de pessoas ao mesmo tempo, decidimos evitar o máximo possível os ambientes com muita gente (trens, estádios de futebol, shows). Também queremos fugir das grandes cidades, especialmente das capitais. Logo vão chegar as férias e temos a intenção de passear um pouco. Vamos, então, viajar de carro dando preferência às cidades pequenas. É mais ou menos o que fazemos aí no Brasil: não podemos garantir que não seremos assaltados, mas, nem por isso, andamos cheios de jóias, por ruas suspeitas à noite. A gente sempre prefere "não dar chance para o azar".

A mensagem que eu quero passar para vocês é a seguinte: o risco é real, mas não é maior do que os riscos que todos nós corremos todos os dias, só pelo fato de estarmos vivos. É chato que isso esteja acontecendo, a gente preferia que fosse diferente. Mas, vocês sabem, eu sou sempre otimista. Acredito mesmo que vamos conseguir sair dessa, principalmente quando olho para trás na história e percebo que já houve situações igualmente ruins que se resolveram (Hitler, Guerra Fria, etc.). Acredito que a situação que estamos vivendo vai exigir de nós tolerância em relação às diferenças. É o que devemos exercitar todos os dias e ensinar às nossas crianças: as pessoas são diferentes, acreditam em coisas diferentes, agem de maneira diferente. E nós precisamos aceitar e conviver com isso.

domingo, março 21, 2004

Nunca pensei que um dia eu ia contar essa história... Mas o tempo, ah o tempo... Ele cura qualquer coisa.

Bem, tudo aconteceu logo que nos mudamos para cá. Já tínhamos feito nossa inscrição no sistema de saúde francês e precisávamos declarar minha gravidez. A partir do quinto mês de gestação as grávidas têm direito a atendimento 100% gratuito, mas, para isso, um médico precisava atestar o "estado interessante" de madame. E eu também precisava encontrar de uma vez um médico para me acompanhar!

O Vidal teve a idéia de pedir uma dica para sua professora, esposa do orientador, que é brasileira e que teve uma filha na França. Perfeito! Mandou um e-mail para ela explicando a situação e dizendo: "...Não conhecemos ninguém aqui. Não temos nenhuma referência de médico. Achamos um pouco estranho e desconfortável simplesmente procurar um nome na lista e 'voilá, este será o nosso médico!'."

A resposta dela veio logo e foi a seguinte: "Eu posso dar o nome da
minha ginecologista, não sei se ela é obstetra. Eu a conheço há 1 ano e a encontrei pelo catálogo de telefone".

Ainda bem que foi por e-mail, assim ninguém pôde ver nossa cara de tacho. Quando o Vidal mencionou "lista", estava justamente pensando na lista telefônica, que foi exatamente o que a Esther fez. Bem, se deu certo com ela, porque não daria conosco, não é mesmo?

Usei as páginas amarelas pela Internet para selecionar ginecologistas que também fossem obstetras em Saint-Sébastien. A tecnologia é uma maravilha! Em poucos segundos eu tinha uma lista com alguns nomes. Era só ligar para qualquer um deles, já que eu não tinha restrição nenhuma. Quer dizer, quase nenhuma! Na verdade, não tive muita sorte com ginecologistas mulheres na minha vida. E meu ginecologista brasileiro (responsável por toda a família, diga-se de passagem) já nos atende há 15 anos. Preferia que fosse um médico. Eu sei, eu sei, pensamento machista, mas, fazer o quê? O problema é que aqui todos os médicos são chamados pelo sobrenome precedido da palavra "Doutor". Não tem feminino, nem masculino (assim como jornalista em português). Só pelo nome, não dá pra saber se é homem ou mulher. Eu não tinha opção mesmo, então resolvi deixar esse último e pequeno detalhe para lá. Eu já estava escolhendo um médico pela lista telefônica, não é? Peguei o primeiro nome da lista e liguei. Era início de outubro, portanto, eu estava com 28 semanas de gestação. Essa informação eu sabia bem, afinal, todas as vezes que nos fazem perguntas sobre a gravidez eles querem saber de quantas semanas e não de quantos meses a gente está. Eu estava preparada para tudo!

- Bom dia, gostaria de marcar uma consulta com Doutor Sobrenome. (Não lembro qual era...)

- Eu tenho um horário para o dia... deixe-me ver... 6 de março.

Achei que eu tinha entendido errado, afinal, era dia 6 de outubro, a secretária não podia estar sugerindo uma consulta para uma data cinco meses na frente!

- Quando?

- 6 de março.

Era isso mesmo.

- Olha, acho que não vai dar. Eu estou grávida e, em seis de março, o bebê já vai estar com quase três meses...

- Ah! A senhora está grávida. Bem, vai ter de ser uma consulta de emergência então... Deixe-me ver... Não... Não... Não... A Senhora faz questão de ser atendida por Doutor Sobrenome?

"Minha filha, eu peguei esse telefone nas páginas amarelas, você acha que eu faço questão de alguma coisa?"

- Não. Na verdade, não.

- Então eu posso sugerir uma consulta com Doutor Labat (esse nome eu lembro bem... Nunca vou esquecer!). Existe um horário para atendimento emergencial. Qual é o mês da gestação?

"Mês? Como assim mês... Sei lá! Sei que são 28 semanas... Ainda vou ter de fazer conta?"

- Ahn... ("estamos no início de outubro") É... ("o nascimento está previsto para fim de dezembro") Bem... ("dá quase três meses") Hum... ("se uma gravidez dura nove meses, então...") Seis meses!

- Então posso marcar para 7 de novembro às 13h10.

"Esse é o horário emergencial? Se um dia eu estiver para morrer e for precisar de uma consulta de emergência aqui na França vou me lembrar de ligar com um mês de antecedência!"

Chegou o dia sete de novembro. O Felipe estava na escola, o dia estava bonito, eu tomei um banho e decidi ir a pé. Dava uns dois kilômetros da nossa casa até o consultório. Saí com uma hora de antecedência para não me atrasar.

Tive uma certa dificuldade para achar o consultório, mas enfim consegui. Entrei e fiquei na sala de espera... esperando. Tinha mais algumas mulheres e eu fiquei imaginando como seria o médico quando a primeira paciente foi chamada... por uma médica! Bom, quem sabe aquele não seria o dia ideal para que acabasse meu preconceito machista contra as médicas ginecologistas? Tudo foi ao acaso, a começar pela própria médica. Talvez isso fosse a providência divina agindo a fim de me fazer rever meus conceitos. Eu acredito nessas coisas.

Mais de 40 minutos de atraso. Estava começando a me irritar quando chegou a minha vez:

- Madame Martins?

Levantei, vesti meu sorriso mais simpático de brasileira-recém-chegada-na-França e fui até a porta do consultório. O sorriso começou a esmorecer ali mesmo:

- Mas você está grávida!

Fiquei pensando qual seria o problema, afinal, mulheres grávidas procuram ginecologistas, não é? Ou será que no primeiro mundo as coisas são diferentes... Achei que não tinha entendido direito. Ainda estávamos paradas na porta do consultório.

- Sou brasileira. Cheguei na França faz quase dois meses e precisava de uma declaração de gravidez e de um médico para me acompanhar...

- De quantos meses você está?

- Sete.

- Não! Na França os médicos não acompanham as pacientes no final da gravidez! Nesse período você deve procurar um obstetra.

- Sim, mas foi o que eu fiz. Procurei nas páginas amarelas um ginecologista e obstetra.

- Mas eu não sou obstetra.

E nós ainda paradas na porta. Achei que tinha de tomar uma atitude: entrei no consultório! Eu precisava da maldita declaração e, além disso, se eu saísse dali não tinha idéia de onde deveria ir para parir.

Ela não tinha outra alternativa. Entrou atrás de mim.

- Me atrasei um pouco mas o que acontece é que hoje todo mundo que marcou consulta veio.

Pelo jeito aqui os médicos praticam o overbooking como as companhias aéreas. Uma sacanagem pra vender mais lugares do que existem no avião confiando que algumas pessoas vão se atrasar ou desistir. Quando vai todo mundo, os últimos a chegar têm um problemão pra resolver. Eu tinha sido vítima de um overbooking ginecológico. Não acreditei!

Fiquei observando a médica. Um cabelo espetado, mal cuidado, mal pintado. Uma aparência de qualquer coisa, menos de médica. E, depois daquela recepção, decidi que não tinha ido com as fuças dela. Mas eu precisava da declaração. Achei que era melhor continuar sendo simpática:

- Aqui está minha carteirinha de gestante. Meu médico no Brasil registrou todos os exames e os dados referentes a esta gravidez e...

- Como eu disse, na França os médicos só acompanham a paciente até o sétimo mês. Depois você deve se encaminhar para o local onde vai ser o parto. Você já sabe onde vai ser?

- Não! E...

- Não vai ser fácil encontrar um local. Tão próximo assim do parto, não vai ter ninguém disponível para você!

Já comecei a imaginar a cena: eu deitada na cama, com as pernas dobradas, um lençol sobre os joelhos, suada, mordendo uma fronha para abafar os urros e minha mãe gritando para o Vidal: "Traga lençóis limpos e água quente!"... Nunca entendi o porquê da água quente. Será que é para escaldar o bebê quando nasce?

- A data prevista pelo seu médico é 29 de dezembro? Estranho. Estou vendo aqui que pela data da última menstruação a sua data provável de ovulação é (qualquer coisa que eu não lembro agora) e, pelas minhas contas isso daria 5 de janeiro!

- Meu médico me explicou que, como não é possível saber a data exata da ovulação e que a única data certa é a da última menstruação, ele faz os cálculos por essa data. Talvez seja por isso que há uma diferença na...

- Na França nós não fazemos assim. Se a data da última menstruação é essa, então a data prevista para o parto é 5 de janeiro! Mas então você está de oito meses? Eu não poderia estar atendendo!

- Sim, mas eu liguei há um mês atrás. E falei para a secretária meu tempo de gestação e...

- É mas a secretária não pode saber tudo! Ela não pode fazer uma consulta por telefone, não é? Bem, deixe ver o que eu posso fazer.

Vaca! Por que será que alguém chama uma mulher de vaca quando quer ofender? Logo a vaca. Um bichinho de olhos doces, de aparência meiga. Nada a ver com o ser estúpido que estava na minha frente. Ela estava falando de novo...

- Estou vendo aqui que é a segunda gravidez. O parto foi normal?

- Não. Foi uma cesariana.

- Por quê?

- Eu tive uma diabete gestacional. Meu médico me explicou que nessas situações a gravidez não pode passar de 40 semanas. No final desse período eu não tinha nenhuma dilatação e o bebê não estava encaixado, então...

- Na França nós não faríamos isso!

Cadela! Outra injustiça. Se o cão é o melhor amigo do homem, ou seja, alguém que nos escuta, nos compreende, porque a cadela também não seria? Nada a ver com aquele ser, além de estúpido, intransigente que estava na minha frente. Ela continuava a falar:

- O que foi que ele escreveu aqui?! Mas ele não podia ter escrito isso! E os exames de toxoplasmose?

- Eu fiz dois, os resultados estão...

- Aqui na França nós fazemos todos os meses! Bem, vou ter de fazer o exame, não é mesmo? Tire a roupa e sente ali.

Como assim, tire a roupa e sente ali. E a salinha? Nem um biombo? E onde está a assistente? Nem um lençol, nem um aventalzinho? E se essa mulher, que só pertence ao grupo dos humanos por puro acaso, resolver me assediar sexualmente? Eu não fui MESMO com as fuças suínas dela. Mas, enfim, não tinha o que fazer, ou melhor, tinha: tirei a roupa e sentei na cadeira.

Ela começou o exame. Apalpa aqui, aperta ali. Pegou aquele instrumento de fazer o exame de colo de útero e mandou ver. Tudo isso com a gentileza de um hipopótamo macho. Quer dizer, estou exagerando. Um hipopótamo deve ser muito mais delicado.

Nesse momento, as lágrimas começaram a escorrer. Eu simplesmente não consegui me controlar.

Ela terminou o exame. Com aquele barrigão eu tive uma certa dificuldade para sair daquela cadeira, e é claro que fulana nem se dignou a me dar uma mãozinha. Eu chorava quase sem parar e ela nem tinha percebido! Quer dizer, enquanto eu me debatia para sair da cadeira ela notou que eu estava chorando e fez o seguinte comentário:

- O exame te machucou?

- É. Um pouquinho... ("Ah... Pelo menos agora ela ia demonstrar um pouco de compaixão...")

- Estranho!

Virou as costas e foi para a mesa.

Jumenta! Está aí outra injustiça, um bicho útil desses não tem nada a ver com aquele ser, além de estúpido e intransigente, inútil que estava na minha frente.

- Você engordou demais! Isso não está certo.

Piranha! Agora sim! Esse é um bichinho muito feio, que não sabe fazer nada mais do que morder, machucar e irritar muito quem chega perto. Está aí uma ofensa justa!

Eu estava me vestindo, tentando com todas as forças segurar as lágrimas que insistiam em pular dos meus olhos como cachoeiras depois de um temporal. Ela pegou um gravadorzinho e começou a ditar para si mesma:

- A paciente tem 34 anos, segunda gestação, cesariana no primeiro parto, presumivelmente por distocia cervical... humpf! É o que o médico escreveu aqui... Primeira consulta... bem... não sabe em qual maternidade vai ser o parto... hummm... somente dois exames de toxoplasmose... humpf!

Ela desligou o gravador e começou a preencher uns papéis. Eu perguntei:

- Já que não é o ginecologista que acompanha o final da gravidez, que lugares eu devo procurar?

- Você não tem opção. A sua única alternativa é o CHU.

- Ah...

- Aqui estão os exames que você deve fazer. Você também deve ligar para o hospital hoje mesmo e marcar uma consulta. Depois ligue aqui e passe para a minha secretária o nome do médico que vai atendê-la para eu saber a quem devo encaminhar o relatório.

Ligou o gravadorzinho de novo:

- Data presumida do parto para 29 de dezembro... humpf!!! ... é isso o que está escrito no documento que o médico brasileiro preencheu, mas pelas minhas contas o parto deve acontecer em 5 de janeiro...

Nesse momento eu tentei explicar de novo a diferença nas datas, mas eu falar e uma vaca mugir dava no mesmo. Na verdade, acho que se uma vaca mugisse ela prestaria mais atenção. Questão de identificação, né?

O sangue ferveu de vez! "Olha aqui! Quem é você para falar do MEU médico com esse ar de sarcasmo? Ética é uma coisa que só existe entre médicos de um mesmo país?" Levantei da cadeira. "Ele é um DOUTOR DE VERDADE, já que está fazendo um doutorado! É especialista em gravidez de alto risco e sabe MUITO BEM quando é que uma cesariana é indicada, já que ELE SIM, é obstetra!" Avancei sobre a mesa, livros e papéis caíram pelo chão. Estava de dedo em riste, cada vez mais perto da maldita. "E mais! Eu não tenho obrigação nenhuma de saber como as coisas acontecem no seu país, já que cheguei aqui há pouco tempo! O MÍNIMO que você deveria fazer é me EXPLICAR como as coisas funcionam e me ORIENTAR com profissionalismo, já que simpatia eu imagino que seja impossível para você". As mãos já estavam avançando para o pescoço dela. "Você deve ser é uma mal amada! Provavelmente, por causa dessa sua cara horrorosa e desse seu cabelo espetado ninguém quer nem chegar perto de você, sua bruxa!!!". Minhas mãos estavam em torno do pescoço dela. Eu apertava com força mesmo. Nem os olhos esbugalhados e a pele arroxeada em torno da boca escancarada me davam o sinal de que estava na hora de parar e...

- ... cheque ou dinheiro?

- Ahn?

- Perguntei se o pagamento vai ser em cheque ou dinheiro?

"Como é que é? Eu ainda vou ter de pagar por isso?"

- Dinheiro. Está aqui... E a declaração de gravidez?

- O quê? Mas isso deve ser preenchido no quinto mês!

Nem tentei explicar que no quinto mês eu nem estava na França ainda. Não sei latir... Fiquei apenas esperando.

- Vou assinar, mas essa declaração pode ser preenchida por qualquer médico.

E eu passei por tudo aquilo sem precisar? Pensei em me atirar na parede arranhando a face e gritando histericamente, mas preferi levantar e ir embora.

Entreguei o dinheiro, pequei os papéis dos exames e a declaração. Foi meio difícil enxergar com as lágrimas turvando minha visão, mas eu consegui. Antes mesmo de sair do consultório já coloquei os óculos escuros. Desisti de tentar achar bichos para descrever aquela mulher. Os coitados não mereciam aquela comparação. Nem mesmo a cobra!

Saí do consultório, caminhei até uma praça, sentei no banquinho e chorei. Chorei por mais de 40 minutos sem nem me preocupar se tinha alguém observando ou não. Chorei toda a raiva, humilhação e dor pelas quais eu tinha passado. Fiquei imaginando mil vinganças contra a médica: quem sabe uma denúncia anônima por maus tratos psicológicos? Passar com o carro numa poça d'água e encharcá-la de lama (não dava! Naquela época a gente não tinha carro...). Já sei! O computador dela um dia ia estragar, ela ia me pedir uma força e eu ia instalar um anti-vírus desatualizado! Também não dava, ela não usava computador. Ainda por cima era antiquada! Queria pegar o primeiro avião de volta para o Brasil!

Durante esse tempo, eu ficava pensando no Felipe. Ele estava nos primeiros dias de escola e ainda chorava muito para ficar lá. A gente pedia para ele tentar não chorar e ele dizia:

- Não dá. Tem uma coisa aqui dentro e o choro me pega...

Eu nunca o entendi tanto quanto naquele momento. Queria ir lá, tirá-lo da escola e abraçá-lo muito e dizer que ele tinha razão: quando o choro pega não dá pra não chorar. Só que, assim como ele, mesmo com o choro pegando, tinha de ir à escola, eu tinha de ir ao laboratório fazer aqueles exames.

Fui. Todo mundo deve ter estranhado os óculos escuros e o nariz vermelho e inchado. Problema deles.

Voltei para casa a pé. Parei numa confeitaria no meio do caminho. Naquele momento, só muitos doces poderiam aplacar a minha angústia. Uma travessa de brigadeiros, por exemplo. Mas, como os franceses não conhecem o brigadeiro, me contentei com uma bomba de chocolate mesmo.

Aquele também era o dia da primeira apresentação que o Vidal faria para o orientador. Ele estava esperançoso e eu também. Queria que pelo menos alguma coisa tivesse dado certo naquela sexta-feira (que nem era 13). Cheguei em casa e liguei para o Vidal:

- Como é que foi a apresentação?

- Uma catástrofe!

Desatei a chorar de novo. E ainda continuei chorando por causa desse episódio até o dia seguinte. Depois foi passando.

A providência divina tinha decidido me pregar uma peça. De muito mau gosto, é verdade. Mas, para compensar, colocou médicas maravilhosas no meu caminho depois. Tudo bem. Elas diminuíram meu preconceito. Ah! E elas confirmaram todos os procedimentos que meu médico tinha tomado. Só mesmo aquela anta que nem obstetra era é que se achava no direto de criticar.

A apresentação do Vidal realmente tinha sido uma catástrofe, mas também com ele as coisas foram melhorando depois. O tempo, como eu disse, cura tudo e, como vocês podem ver, eu nem fiquei traumatizada com o episódio...

Por falar nisso, tem algum psicólogo de plantão por aí?

quinta-feira, março 18, 2004

Oi gente! Só passei por aqui para dar um sinal de vida. Aliás, um sinal de semi-vida... Estou um verdadeiro bagaço! O Felipe teve uma daquelas crises de bronquite. Elas agoram passam relativamente rápido, só que sempre começam em torno da meia-noite e vão até o fim da tarde do dia seguinte. O resultado? Duas noites sem dormir, dores pelo corpo e um cansaço...

Além disso, o Vidal está emendando a terceira semana de trabalho pesado. Ele está preparando um artigo para um congresso e a única coisa boa disso é que os artigos sempre têm data limite para serem entregues, o que significa que está próximo o fim desse período. A data de entrega é 22 de março, segunda-feira. Já viram como vai ser nosso fim de semana, né?

Para coroar, a Ana Luíza descobriu há alguns dias que "quem não chora não mama" e também não fica no colo o tempo todo sendo embalado de pé! É isso aí! Ela resolveu começar a "botar as manguinhas de fora" e demonstrar que não estava gostando daquela história de eu dizer que ela era muito calminha. Agora bota a "boca no trombone" todos os dias e "puxa a brasa para a sardinha dela" sempre que possível. Será que eu esqueci algum ditado?

Ah sim, como "Deus ajuda a quem cedo madruga", vou caçar a minha cama. Mesmo porque, mesmo se Deus não ajudasse, nenhum dos meus dois pimpolhos ia me deixar dormir muito.

Até!

terça-feira, março 09, 2004

Prometi notícias do Felipe... Aí vão elas!

Ele anda meio agitado nos últimos meses. Será que é porque as coisas mudaram um pouquinho pra ele? Vejamos... Ele perdeu a babá, mudou de casa, de cidade, de país. Chegou e ficou mais de dois meses sem falar com ninguém (além de mim e do Vidal, é claro) porque todo mundo aqui só fala francês. Não tinha mais os programas que ele conhecia na televisão e, quando tinha, era, obviamente, em francês. Depois ele foi pra escola, passar o dia todo junto com crianças! Coisa boa, se não fosse por um detalhe: as crianças só falam francês! Pra coroar tudo isso: a chegada de uma irmã, que não fala francês, mas que, em compensação, diminuiu o tempo que a mãe e o pai tinham para ele. Será que esqueci alguma coisa?

Acho que ele tem todos os motivos pra estar meio injuriado conosco, né? Eu e o Vidal andamos conversando e chegamos à conclusão que o Felipe tem duas opções: ou vai ser um "cidadão do mundo", super descolado, independente, bem resolvido, ou nós vamos ter de fazer um empréstimo no banco pra pagar a terapia...

Na verdade, o que está acontecendo tem uma explicação "científica". Recentemente, li um livro chamado "Criando Meninos" (às vezes a gente precisa ler esse tipo de coisa para, pelo menos, errar com respaldo profissional...) Na verdade, o livro é "meia boca". Parece mais uma reportagem da revista Cláudia. Mas tem uma coisa escrita lá que fez muito sentido pra mim (e à qual estou me apegando fervorosamente pra não enlouquecer de vez). O que acontece é o seguinte: em torno dos quatro anos, ocorre a liberação de uma dose cavalar de testosterona no organismo dos meninos. O efeito prático disso é que o mancebo começa a ter arroubos de macheza e passa a querer a lutar (o Vidal que o diga), bater, arrotar, falar palavrão, coçar o saco, todas essas delicadezas associadas ao sexo forte. Felizmente isso passa lá pelos cinco anos para só voltar na puberdade (em alguns casos, definitivamente, é preciso reconhecer). Ai... Será que demora muito pra chegar setembro? É quando ele completa cinco anos. No dia seguinte já não vou mais tolerar essas coisas, afinal ele não vai ter mais desculpa hormonal, né?

Vou contar pra vocês uma coisa: haja energia pra ser mãe de um super-herói. Sim, porque ele é o Power Rangers. Os tais dos hormônios são poderosos mesmo! As coisas são mais ou menos assim: ele luta de espada ou de golpes ninja todos os dias (sozinho ou contra o Vidal), adora comentários escatológicos (quanto mais nojento, melhor) e (essa é a pior parte) tem as brigas...

Temos as brigas com hora marcada, por exemplo, na hora de colocar roupa, na hora de tomar banho (com as brigas intermediárias para lavar o cabelo e para sair do banho). Além dessas, temos as "brigas-surpresa" que podem acontecer a qualquer momento e por motivos realmente sérios como eu passar na frente da televisão exatamente na hora em que estava reprisando pela nonagésima sétima vez (no dia) a propaganda do boneco do Action Man. Quem já viu o comportamento dele acha engraçado. Ele fica empertigado (sempre quis usar essa palavra!), enruga a testa até juntar as sobrancelhas, arregala bem os olhos, expande as ventas do nariz e, de dedo em riste, diz: "Fica quieta! Não fala nem uma palavra!" E, ai de mim se eu tentar suspirar alguma coisa. Ele vira as costas e sai pisando duro! Legal, né? Legal pra vocês que estão de longe e não precisam educar essa criança! A gente fica aqui sem saber o que fazer: conversar? Ignorar? Dar risada? Espancar? Sentar no chão e chorar arrancando os cabelos e rasgando as vestes até aparecer algum vizinho com o pessoal do sanatório e a camisa de força?

Ele também já aprendeu o uso dos palavrões. Merda! É o preferido. A gente não pode reclamar porque também fala, e, como dificilmente vamos conseguir parar de proferir essas gentilezas, o melhor é explicar a, como direi, "etiqueta" da coisa. Esses dias ele me disse:

- Você é uma merda!

Ao que eu respondi:

- Você não pode falar isso para as pessoas! Você já me viu falar isso pra você ou pro seu pai? Não senhor, isso eu não vou permitir!

Aí ele ficou ofendido, bufou, se virou pra sair da maneira teatral de sempre e, durante a manobra, derrubou uma cadeira. Aí ele disse:

- Merda!

E eu respondi:

- Ah! Agora sim. Esse é o momento certo de falar... (a gente tem de educar para todas as situações, né?)

O problema é que ele é cabeça dura mesmo. Já estou vendo a minha cunhada Consuelo dizendo: "Isso aí é Martins puro!". A professora me disse, logo nos primeiros dias: "Il est têtu, n'est-ce pas? S'il ne veut pas une chose, il ne veut pas!". Traduzindo… "Ele é teimoso, né? Se ele não quer uma coisa, não quer e pronto!". Aí eu respondi: "É uma coisa que ele herdou do pai dele, eu não tenho nada a ver com isso!".

O mais engraçado é que o Felipe é a criança mais amorosa que eu conheço! Quando está tudo bem ele não economiza nos abraços, nos beijos e nos elogios. Comigo, com o Vidal, com a Ana Luíza. Ele já disse coisas como "Eu gosto de ser filho de vocês" e "Eu gosto que a Ana Luíza está aqui em casa. Ela demorou pra chegar, mas eu acho bem legal que ela chegou" (essa foi no domingo passado). É ou não é um amor? Esses dias, numa briga comigo, ele falou: "... e eu vou acordar a Ana Luíza! Vou lá e vou dar beijo nela até ela acordar!".

Falando em beijos... Há alguns meses, sempre que ele ficava com muito sono, começava a sessão "beijos". Era geralmente comigo. Uma profusão deles, sem parar. Um dia até foi meio constrangedor. Já tínhamos chegado aqui, e, naquele momento, estávamos no escritório da Segurança Social fazendo a nossa inscrição. Conversas sérias, profissionalismo dos dois lados (dos funcionários e do nosso) e o Felipe no meu colo. De repente, ele me abraçou e me deu um beijo. "Oh! Como ele é fofinho!". Outros dois beijos. "Ai que querido!". Mais cinco beijos. "Tá bom. Tá bom". Mais quinze beijos! "Fecha o olhinho e dorme, tá?" Mais vinte e cinco beijos (risadinha sem graça para os franceses) "Ele fica assim quando está com sono...." (Mais risadinhas sem graça, agora da parte deles). O problema é que ele puxava o meu pescoço e ficava dando beijos no rosto. Eu ficava curvada, tentando prestar atenção ao que a mocinha dizia e ela tentando não prestar atenção ao que o Felipe fazia. Se eu tentasse sentar direito era pior: ele saía lascando beijos no braço, na mão, na barriga, onde a boca pegasse. Tive de sair da sala e fazer ele dormir no corredor para poder continuar a conversa... Mas, pensando bem, sinto saudade da fase dos beijos...

Agora, quando ele está com sono, vira um monstro com sete cabeças, vinte e um focinhos, quarenta e nove braços que solta labaredas por todas as bocas (isso ele herdou de mim, tenho de reconhecer...). Geralmente esse é o momento em que acontecem as brigas mais ferozes.

O mais legal é que agora ele já briga em francês! Esses dias, na hora do banho:

- Tira a roupa, Felipe.

- No!

- Tira a roupa e entra no chuveiro, Felipe.

- NO!! Laisse-moi! (Me deixa!)

- Anda. Tô mandando!

- JE NE SUIS PLUS (eu não sou mais)... Como é que filho mesmo em francês?

- Fils.

- JE NE SUIS PLUS TON FILS!!!

A gente aproveita todos os momentos pra ensinar francês pra ele... Aliás, o francês... Essa é uma coisa maravilhosa! É impressionante a evolução. A cada dia ele nos surpreende com uma expressão nova. Começou devagar, com poucas palavras, mas que ele falava o tempo todo: "No!" (Não!), "Attends! (Espera!)", "Arrête! (Pára!)". No início, ele misturava as coisas:

- Acorda, Felipe...

- Pra quê?

- Pra ir pra escola...

- Não! Pas de escola! (Pas de é uma maneira de dizer "Nada de...").

Depois, ele começou a ficar metido... No dia em que estávamos voltando de Paris (isso mesmo, naquele trem...) ele estava sentado com meu pai no banco. O Felipe estava "ensinando" meu pai a contar até dez em francês. No final da "aula" meu pai disse:

- Vou contar até dez, então.

- Tá.

- Un, deux, trois, quatre, cinq, six, sept, huit, neuf, dix! Que tal?

- Você falou certo. Mas a voz tá toda errada.

Já estava corrigindo a pronúncia, o danadinho! Veja que ele já tem o espírito do professor: um pouco de motivação, depois a crítica.

Um dia, ficamos espantados. Eu estava no hospital, o Vidal tinha saído com meu pai e ele estava em casa com a minha mãe. Tocou o telefone e ele atendeu:

- Alu? (Ele já falava o alô com sotaque, tanto que um dia o Vidal ligou pra casa e não reconheceu a voz dele. Achou que tinha errado o número e que um francês tinha atendido. Começou a falar em francês e só depois de algumas frases percebeu que era o Felipe!)

- Papa avec Papi. (Papai com vovô)

- Maman à l'hôpital. (Mamãe no hospital)

- Mami ne parle pas français. (Vovó não fala francês).

E desligou. Depois descobrimos que era a gerente do banco. E ela entendeu o recado!

Agora, a coisa já está assim: pra brincar, só francês. Os desenhos na televisão e as brincadeiras na escola são em francês, então ele não sabe mais brincar em português. Mesmo quando está brincando sozinho... Já peguei ele falando dormindo... em francês. Muitas vezes, mesmo quando conversa conosco, ele fala francês. E é de uma hora pra outra, sem motivo e sem aviso. Ontem, por exemplo, ele estava almoçando e nós estávamos conversando sobre alguma coisa qualquer, quando ele repentinamente mudou de assunto (e de idioma):

- Tu sais, à l'école il y a un jeu. Le jeu de la caisse. (Você sabe, na escola tem um jogo. O jogo da caixa).

- Ah, bon? (É mesmo?)

- Oué! (É! Na verdade, deveria ser oui, mas até isso a ferinha já pegou: o sotaque!)

- Et qu'est-ce que c'est que ça, la caísse? (E o que é isso: a caixa? Eu queria saber o que significava a palavra caísse, que eu não tinha entendido direito...)

- Je ne sais pas comment dire en français, alors je vais dire en portugais, d'accord? (Eu não sei como dizer em francês, então vou dizer em português, tá?)

- D'accord! (Tá!)

- La caisse de la giraffe.

Entenderam? Não? Mas ele falou "em bom português"! Nem ele percebeu que tinha falado em francês...

A escola e a televisão são as grandes responsáveis por essa fluência. A professora já fez vários elogios. Não só ao francês, mas às habilidades dele como um todo. Ela disse que não há diferença nenhuma entre ele (que não freqüentava escola) e uma criança que já estava há mais de um ano no maternal. Ele recorta e cola com destreza. Pinta super bem e sem sair um milímetro dos limites do desenho (e, se por acaso sair um pouquinho ele já joga o papel longe e fala: "Merda!". Ah, esses Martins...). A única coisa que ele ainda não aceitou foi a comida. Aliás, isso é uma coisa que ele detesta: o almoço na escola. Eu já perguntei pra ele:

- Felipe, você gosta de morar aqui na França?

- Não!

- Por quê?

- Porque aqui tem almoço na escola.

Ele disse que só quer ir à escola quando chegar no Brasil ("Porque lá não tem almoço!").

Logo nos primeiros dias, a professora disse: "Olha, ele não quis comer nada". Na verdade, depois de uns dias ele já comia alguma coisa: pão seco. Em pé, encostado na parede ao lado da janela. Nem água pra acompanhar! Depois, as coisas foram evoluindo: ele passou a se sentar no chão, mas continuava encostado na parede ao lado da janela! Isso durou muito tempo.

Hoje já está bem melhor: ele se senta à mesa. Mas continua comendo só pão seco (ainda não vai nem água pra acompanhar). Quer dizer, muito de vez em quando ele come um queijo ou uma batata. Mas isso aconteceu só recentemente...

Não pensem que nós não tentamos. Foram várias as estratégias:

Conversa: "Felipe, você tem de comer pra ficar fortinho..."

Chantagem emocional: "A mamãe ia ficar tão feliz se você comesse..."

Prêmio: "Quando você comer na escola por uma semana vai ganhar um boneco do Homem Aranha". (Até hoje ele está sem o boneco...)

Rispidez: "Olha aqui. Você tem de comer e pronto!"

Castigo: "A partir de agora, vai perder todos os dias alguma coisa até começar a comer na escola. E vamos começar com o filme dos Power Rangers na televisão!".

E assim fizemos. Ele foi perdendo filmes, jogos, brinquedos e nada! Como disse a professora, ele é têtu, né? Nessas alturas, a Ana Luíza já tinha nascido e o clima não estava dos melhores. Ele não demonstrou ciúme diretamente, mas ficou muito agressivo. Comigo, principalmente. Nesse bolo todo, a história da comida estava virando um tormento. Então decidimos o seguinte: ele não é obrigado a comer na escola. Mas é obrigado a sentar com os colegas e a comer quando chegar em casa. Tem dado certo. Foi depois disso que ele começou a experimentar as coisas por lá. Quem sabe até 2006 ele já não está até tomando água?

O esquema dos castigos só continuou para outras situações: fez alguma coisa grave (bateu, gritou, exagerou na briga) perde uma coisa importante por um tempo. Pode ser um filme ou um jogo no computador, um brinquedo, a possibilidade de ver algum dos seus "amores" na televisão (Power Rangers, Hércules ou um seriado chamado Missão Pirata)... Na verdade, ele perde aquilo que ele está querendo fazer no momento. O problema, é que ele já começou a fazer "avaliações de custo-benefício":

- Felipe, pára jogar pedrinhas nessa poça d'água, você está se sujando todo.

Ploc! (Barulho da pedrinha caindo na água)

- Felipe! Já falei pra parar!

Ploc! Ploc!

- FELIPE! Pára A-GO-RA!

- Se eu não parar o que é que eu vou perder?

Fora (tudo) isso, só aquela mania de, como dizer, observar a limpeza da casa. Eu já contei que ele se acha no direito de me dar umas "duras" de vez em quando, né? No domingo de Carnaval estava um dia horrível. Frio, chovendo. Além do mais, era domingo. E Carnaval. Ficamos vegetando de pijama o dia inteiro. Quando chegou a noite ele entrou no quarto, cama desarrumada, como toda boa cama de domingo, e disse:

- Mamãe! Já é de noite e a casa ficou toda desmanchada.

Eu já estava preparada para isso! A resposta estava na ponta da língua:

- E porque você não arrumou então?

- Sozinho?!

Ponto pra ele!

Ele até tem o direito de reclamar porque (quase) sempre que eu peço ajuda ele comparece. Às vezes, eu nem peço ajuda e ele se oferece pra fazer também. Claro que eu nunca recuso, mesmo que isso signifique mais trabalho para mim ou mais tempo para terminar (minha futura nora vai me agradecer por isso!). Vejam só o que aconteceu no dia em que eu fiz um faxinão no piso da casa toda:


Antes que alguém me denuncie para algum organismo contra o trabalho infantil quero dizer três coisas: primeiro, foi ele quem quis; segundo, ele foi café-com-leite; terceiro, eu tomei todas as precauções de segurança no trabalho. Vejam que ele estava usando luvas!

E ainda bem que fizemos essa limpeza... Alguns dias depois aconteceu um fato que me deixou em estado de choque por algumas horas.

Ele estava comendo cereais e assistindo à televisão. Ele não come os cereais com leite, prefere sequinho mesmo. Só que ele ficava "sacizando" na frente da televisão, acabou derrubando o potinho e os cereais caíram todos no chão.

- Olha aí! Não falei que ia acabar caindo?

Juntei meio por cima o que dava e falei:

- Vai buscar aquela pazinha com a vassourinha (uma coisa ótima que achei no mercado...) pra limpar isso aqui.

- Já vou...

Bem nessa hora começou a passar Power Rangers. Nem mesmo os próprios Power Rangers em pessoa, transformados em Megazord e com espada Ninja em punho conseguiriam tirá-lo da frente da televisão nesse momento, quem dirá eu. Resolvi me poupar o episódio de mais uma discussão e decidi esperar pelo fim do seriado. Deitei no sofá já que não dava pra ficar com as pernas para baixo porque o chão estava cheio de cereais e fiquei olhando para a televisão. Só que eu estava exausta, Power Rangers não é bem o tipo de programa que mantém a minha atenção e, além do mais, eu já tinha visto aquele mesmo episódio umas quinze vezes, no mínimo. Eu tinha certeza que não ia ser daquela vez que o "do mal" ia ganhar do "do bem". Acabei cochilando. Quer dizer, caí nos braços de Morfeu valendo! Quando acordei, tinha acabado o Power Rangers e já estava quase terminando o Sonic que passa depois. Olhei para o chão e ele estava limpinho.

- Que legal Fê! Você já varreu o chão?

- Não varri.

- Como não varreu? Está limpinho...

- Eu lambi.

- O quê?!!!! Você está brincando, não está?

- Não. Eu lambi mesmo.

Pela cara dele, eu vi que era verdade. Fiquei catatônica por alguns segundos. Ainda bem que a gente tinha lavado o chão com água sanitária uns dias antes. Acho que foi por isso que ele se sentiu confiante. Era ele mesmo quem tinha limpado aquela parte do chão!

quinta-feira, março 04, 2004

Hoje está fazendo um dia horroroso! Chuva desde cedo. Aquela chuvinha mansa que parece que vai durar dias! Pelo menos a temperatura aumentou um pouquinho. Tivemos muito frio nos últimos dias...

Bem, nada de muitas novidades hoje. Só quero agradecer as diversas manifestações de alegria com minhas historiazinhas. Acho que eu me divirto muito mais escrevendo do que vocês lendo... Pena que logo devem acabar os momentos pitorescos. Mas, nada de pânico! Ainda tenho alguns episódios interessantes pra contar pra vocês! E quanto à possibilidade de talvez transformar isso em livro quero dizer... quem sabe? Se mais quinze pessoas fizerem essa sugestão sou capaz até de achar que dá mesmo :)

Como eu já disse pra muita gente, só vejo um problema: quem é que vai querer ler? Todo mundo que é gentil o suficiente pra nos acompanhar já está lendo, né? Tudo bem que as famílias são grandes e a que gente tem muitos amigos... Taí! Uma boa idéia! Eu escrevo o livro e todo mundo compra vários exemplares, assim a gente vai poder comprar as passagens e voltar para o Brasil. Aha! Agora sim vamos ver o quanto vocês querem nos ver de novo por aí!

Bem, estou preparando uma novidade: meu livro de receitas online. Todas as receitas que estou testando e até mesmo "criando" (aqueles que não acreditavam que isso seria possível vão se surpreender!) vou disponibilizar no nosso site. Não pensem que eu estou sendo só boazinha, não! É que, do jeito que eu sou "organizada" corro o risco de esquecer ou de perder as receitas.

E, na minha próxima "publicação", notícias do Felipe. Quero que vocês saibam como tem sido essa experiência para o meu fofinho, e como estão as coisas no momento. Mas, vou deixar pra depois. Estou fazendo coisas no computador hoje e ele está "rápido feito um cágado paralítico" (atenção ao acento da palavra cÁgado, hein?)...