terça-feira, março 09, 2004

Prometi notícias do Felipe... Aí vão elas!

Ele anda meio agitado nos últimos meses. Será que é porque as coisas mudaram um pouquinho pra ele? Vejamos... Ele perdeu a babá, mudou de casa, de cidade, de país. Chegou e ficou mais de dois meses sem falar com ninguém (além de mim e do Vidal, é claro) porque todo mundo aqui só fala francês. Não tinha mais os programas que ele conhecia na televisão e, quando tinha, era, obviamente, em francês. Depois ele foi pra escola, passar o dia todo junto com crianças! Coisa boa, se não fosse por um detalhe: as crianças só falam francês! Pra coroar tudo isso: a chegada de uma irmã, que não fala francês, mas que, em compensação, diminuiu o tempo que a mãe e o pai tinham para ele. Será que esqueci alguma coisa?

Acho que ele tem todos os motivos pra estar meio injuriado conosco, né? Eu e o Vidal andamos conversando e chegamos à conclusão que o Felipe tem duas opções: ou vai ser um "cidadão do mundo", super descolado, independente, bem resolvido, ou nós vamos ter de fazer um empréstimo no banco pra pagar a terapia...

Na verdade, o que está acontecendo tem uma explicação "científica". Recentemente, li um livro chamado "Criando Meninos" (às vezes a gente precisa ler esse tipo de coisa para, pelo menos, errar com respaldo profissional...) Na verdade, o livro é "meia boca". Parece mais uma reportagem da revista Cláudia. Mas tem uma coisa escrita lá que fez muito sentido pra mim (e à qual estou me apegando fervorosamente pra não enlouquecer de vez). O que acontece é o seguinte: em torno dos quatro anos, ocorre a liberação de uma dose cavalar de testosterona no organismo dos meninos. O efeito prático disso é que o mancebo começa a ter arroubos de macheza e passa a querer a lutar (o Vidal que o diga), bater, arrotar, falar palavrão, coçar o saco, todas essas delicadezas associadas ao sexo forte. Felizmente isso passa lá pelos cinco anos para só voltar na puberdade (em alguns casos, definitivamente, é preciso reconhecer). Ai... Será que demora muito pra chegar setembro? É quando ele completa cinco anos. No dia seguinte já não vou mais tolerar essas coisas, afinal ele não vai ter mais desculpa hormonal, né?

Vou contar pra vocês uma coisa: haja energia pra ser mãe de um super-herói. Sim, porque ele é o Power Rangers. Os tais dos hormônios são poderosos mesmo! As coisas são mais ou menos assim: ele luta de espada ou de golpes ninja todos os dias (sozinho ou contra o Vidal), adora comentários escatológicos (quanto mais nojento, melhor) e (essa é a pior parte) tem as brigas...

Temos as brigas com hora marcada, por exemplo, na hora de colocar roupa, na hora de tomar banho (com as brigas intermediárias para lavar o cabelo e para sair do banho). Além dessas, temos as "brigas-surpresa" que podem acontecer a qualquer momento e por motivos realmente sérios como eu passar na frente da televisão exatamente na hora em que estava reprisando pela nonagésima sétima vez (no dia) a propaganda do boneco do Action Man. Quem já viu o comportamento dele acha engraçado. Ele fica empertigado (sempre quis usar essa palavra!), enruga a testa até juntar as sobrancelhas, arregala bem os olhos, expande as ventas do nariz e, de dedo em riste, diz: "Fica quieta! Não fala nem uma palavra!" E, ai de mim se eu tentar suspirar alguma coisa. Ele vira as costas e sai pisando duro! Legal, né? Legal pra vocês que estão de longe e não precisam educar essa criança! A gente fica aqui sem saber o que fazer: conversar? Ignorar? Dar risada? Espancar? Sentar no chão e chorar arrancando os cabelos e rasgando as vestes até aparecer algum vizinho com o pessoal do sanatório e a camisa de força?

Ele também já aprendeu o uso dos palavrões. Merda! É o preferido. A gente não pode reclamar porque também fala, e, como dificilmente vamos conseguir parar de proferir essas gentilezas, o melhor é explicar a, como direi, "etiqueta" da coisa. Esses dias ele me disse:

- Você é uma merda!

Ao que eu respondi:

- Você não pode falar isso para as pessoas! Você já me viu falar isso pra você ou pro seu pai? Não senhor, isso eu não vou permitir!

Aí ele ficou ofendido, bufou, se virou pra sair da maneira teatral de sempre e, durante a manobra, derrubou uma cadeira. Aí ele disse:

- Merda!

E eu respondi:

- Ah! Agora sim. Esse é o momento certo de falar... (a gente tem de educar para todas as situações, né?)

O problema é que ele é cabeça dura mesmo. Já estou vendo a minha cunhada Consuelo dizendo: "Isso aí é Martins puro!". A professora me disse, logo nos primeiros dias: "Il est têtu, n'est-ce pas? S'il ne veut pas une chose, il ne veut pas!". Traduzindo… "Ele é teimoso, né? Se ele não quer uma coisa, não quer e pronto!". Aí eu respondi: "É uma coisa que ele herdou do pai dele, eu não tenho nada a ver com isso!".

O mais engraçado é que o Felipe é a criança mais amorosa que eu conheço! Quando está tudo bem ele não economiza nos abraços, nos beijos e nos elogios. Comigo, com o Vidal, com a Ana Luíza. Ele já disse coisas como "Eu gosto de ser filho de vocês" e "Eu gosto que a Ana Luíza está aqui em casa. Ela demorou pra chegar, mas eu acho bem legal que ela chegou" (essa foi no domingo passado). É ou não é um amor? Esses dias, numa briga comigo, ele falou: "... e eu vou acordar a Ana Luíza! Vou lá e vou dar beijo nela até ela acordar!".

Falando em beijos... Há alguns meses, sempre que ele ficava com muito sono, começava a sessão "beijos". Era geralmente comigo. Uma profusão deles, sem parar. Um dia até foi meio constrangedor. Já tínhamos chegado aqui, e, naquele momento, estávamos no escritório da Segurança Social fazendo a nossa inscrição. Conversas sérias, profissionalismo dos dois lados (dos funcionários e do nosso) e o Felipe no meu colo. De repente, ele me abraçou e me deu um beijo. "Oh! Como ele é fofinho!". Outros dois beijos. "Ai que querido!". Mais cinco beijos. "Tá bom. Tá bom". Mais quinze beijos! "Fecha o olhinho e dorme, tá?" Mais vinte e cinco beijos (risadinha sem graça para os franceses) "Ele fica assim quando está com sono...." (Mais risadinhas sem graça, agora da parte deles). O problema é que ele puxava o meu pescoço e ficava dando beijos no rosto. Eu ficava curvada, tentando prestar atenção ao que a mocinha dizia e ela tentando não prestar atenção ao que o Felipe fazia. Se eu tentasse sentar direito era pior: ele saía lascando beijos no braço, na mão, na barriga, onde a boca pegasse. Tive de sair da sala e fazer ele dormir no corredor para poder continuar a conversa... Mas, pensando bem, sinto saudade da fase dos beijos...

Agora, quando ele está com sono, vira um monstro com sete cabeças, vinte e um focinhos, quarenta e nove braços que solta labaredas por todas as bocas (isso ele herdou de mim, tenho de reconhecer...). Geralmente esse é o momento em que acontecem as brigas mais ferozes.

O mais legal é que agora ele já briga em francês! Esses dias, na hora do banho:

- Tira a roupa, Felipe.

- No!

- Tira a roupa e entra no chuveiro, Felipe.

- NO!! Laisse-moi! (Me deixa!)

- Anda. Tô mandando!

- JE NE SUIS PLUS (eu não sou mais)... Como é que filho mesmo em francês?

- Fils.

- JE NE SUIS PLUS TON FILS!!!

A gente aproveita todos os momentos pra ensinar francês pra ele... Aliás, o francês... Essa é uma coisa maravilhosa! É impressionante a evolução. A cada dia ele nos surpreende com uma expressão nova. Começou devagar, com poucas palavras, mas que ele falava o tempo todo: "No!" (Não!), "Attends! (Espera!)", "Arrête! (Pára!)". No início, ele misturava as coisas:

- Acorda, Felipe...

- Pra quê?

- Pra ir pra escola...

- Não! Pas de escola! (Pas de é uma maneira de dizer "Nada de...").

Depois, ele começou a ficar metido... No dia em que estávamos voltando de Paris (isso mesmo, naquele trem...) ele estava sentado com meu pai no banco. O Felipe estava "ensinando" meu pai a contar até dez em francês. No final da "aula" meu pai disse:

- Vou contar até dez, então.

- Tá.

- Un, deux, trois, quatre, cinq, six, sept, huit, neuf, dix! Que tal?

- Você falou certo. Mas a voz tá toda errada.

Já estava corrigindo a pronúncia, o danadinho! Veja que ele já tem o espírito do professor: um pouco de motivação, depois a crítica.

Um dia, ficamos espantados. Eu estava no hospital, o Vidal tinha saído com meu pai e ele estava em casa com a minha mãe. Tocou o telefone e ele atendeu:

- Alu? (Ele já falava o alô com sotaque, tanto que um dia o Vidal ligou pra casa e não reconheceu a voz dele. Achou que tinha errado o número e que um francês tinha atendido. Começou a falar em francês e só depois de algumas frases percebeu que era o Felipe!)

- Papa avec Papi. (Papai com vovô)

- Maman à l'hôpital. (Mamãe no hospital)

- Mami ne parle pas français. (Vovó não fala francês).

E desligou. Depois descobrimos que era a gerente do banco. E ela entendeu o recado!

Agora, a coisa já está assim: pra brincar, só francês. Os desenhos na televisão e as brincadeiras na escola são em francês, então ele não sabe mais brincar em português. Mesmo quando está brincando sozinho... Já peguei ele falando dormindo... em francês. Muitas vezes, mesmo quando conversa conosco, ele fala francês. E é de uma hora pra outra, sem motivo e sem aviso. Ontem, por exemplo, ele estava almoçando e nós estávamos conversando sobre alguma coisa qualquer, quando ele repentinamente mudou de assunto (e de idioma):

- Tu sais, à l'école il y a un jeu. Le jeu de la caisse. (Você sabe, na escola tem um jogo. O jogo da caixa).

- Ah, bon? (É mesmo?)

- Oué! (É! Na verdade, deveria ser oui, mas até isso a ferinha já pegou: o sotaque!)

- Et qu'est-ce que c'est que ça, la caísse? (E o que é isso: a caixa? Eu queria saber o que significava a palavra caísse, que eu não tinha entendido direito...)

- Je ne sais pas comment dire en français, alors je vais dire en portugais, d'accord? (Eu não sei como dizer em francês, então vou dizer em português, tá?)

- D'accord! (Tá!)

- La caisse de la giraffe.

Entenderam? Não? Mas ele falou "em bom português"! Nem ele percebeu que tinha falado em francês...

A escola e a televisão são as grandes responsáveis por essa fluência. A professora já fez vários elogios. Não só ao francês, mas às habilidades dele como um todo. Ela disse que não há diferença nenhuma entre ele (que não freqüentava escola) e uma criança que já estava há mais de um ano no maternal. Ele recorta e cola com destreza. Pinta super bem e sem sair um milímetro dos limites do desenho (e, se por acaso sair um pouquinho ele já joga o papel longe e fala: "Merda!". Ah, esses Martins...). A única coisa que ele ainda não aceitou foi a comida. Aliás, isso é uma coisa que ele detesta: o almoço na escola. Eu já perguntei pra ele:

- Felipe, você gosta de morar aqui na França?

- Não!

- Por quê?

- Porque aqui tem almoço na escola.

Ele disse que só quer ir à escola quando chegar no Brasil ("Porque lá não tem almoço!").

Logo nos primeiros dias, a professora disse: "Olha, ele não quis comer nada". Na verdade, depois de uns dias ele já comia alguma coisa: pão seco. Em pé, encostado na parede ao lado da janela. Nem água pra acompanhar! Depois, as coisas foram evoluindo: ele passou a se sentar no chão, mas continuava encostado na parede ao lado da janela! Isso durou muito tempo.

Hoje já está bem melhor: ele se senta à mesa. Mas continua comendo só pão seco (ainda não vai nem água pra acompanhar). Quer dizer, muito de vez em quando ele come um queijo ou uma batata. Mas isso aconteceu só recentemente...

Não pensem que nós não tentamos. Foram várias as estratégias:

Conversa: "Felipe, você tem de comer pra ficar fortinho..."

Chantagem emocional: "A mamãe ia ficar tão feliz se você comesse..."

Prêmio: "Quando você comer na escola por uma semana vai ganhar um boneco do Homem Aranha". (Até hoje ele está sem o boneco...)

Rispidez: "Olha aqui. Você tem de comer e pronto!"

Castigo: "A partir de agora, vai perder todos os dias alguma coisa até começar a comer na escola. E vamos começar com o filme dos Power Rangers na televisão!".

E assim fizemos. Ele foi perdendo filmes, jogos, brinquedos e nada! Como disse a professora, ele é têtu, né? Nessas alturas, a Ana Luíza já tinha nascido e o clima não estava dos melhores. Ele não demonstrou ciúme diretamente, mas ficou muito agressivo. Comigo, principalmente. Nesse bolo todo, a história da comida estava virando um tormento. Então decidimos o seguinte: ele não é obrigado a comer na escola. Mas é obrigado a sentar com os colegas e a comer quando chegar em casa. Tem dado certo. Foi depois disso que ele começou a experimentar as coisas por lá. Quem sabe até 2006 ele já não está até tomando água?

O esquema dos castigos só continuou para outras situações: fez alguma coisa grave (bateu, gritou, exagerou na briga) perde uma coisa importante por um tempo. Pode ser um filme ou um jogo no computador, um brinquedo, a possibilidade de ver algum dos seus "amores" na televisão (Power Rangers, Hércules ou um seriado chamado Missão Pirata)... Na verdade, ele perde aquilo que ele está querendo fazer no momento. O problema, é que ele já começou a fazer "avaliações de custo-benefício":

- Felipe, pára jogar pedrinhas nessa poça d'água, você está se sujando todo.

Ploc! (Barulho da pedrinha caindo na água)

- Felipe! Já falei pra parar!

Ploc! Ploc!

- FELIPE! Pára A-GO-RA!

- Se eu não parar o que é que eu vou perder?

Fora (tudo) isso, só aquela mania de, como dizer, observar a limpeza da casa. Eu já contei que ele se acha no direito de me dar umas "duras" de vez em quando, né? No domingo de Carnaval estava um dia horrível. Frio, chovendo. Além do mais, era domingo. E Carnaval. Ficamos vegetando de pijama o dia inteiro. Quando chegou a noite ele entrou no quarto, cama desarrumada, como toda boa cama de domingo, e disse:

- Mamãe! Já é de noite e a casa ficou toda desmanchada.

Eu já estava preparada para isso! A resposta estava na ponta da língua:

- E porque você não arrumou então?

- Sozinho?!

Ponto pra ele!

Ele até tem o direito de reclamar porque (quase) sempre que eu peço ajuda ele comparece. Às vezes, eu nem peço ajuda e ele se oferece pra fazer também. Claro que eu nunca recuso, mesmo que isso signifique mais trabalho para mim ou mais tempo para terminar (minha futura nora vai me agradecer por isso!). Vejam só o que aconteceu no dia em que eu fiz um faxinão no piso da casa toda:


Antes que alguém me denuncie para algum organismo contra o trabalho infantil quero dizer três coisas: primeiro, foi ele quem quis; segundo, ele foi café-com-leite; terceiro, eu tomei todas as precauções de segurança no trabalho. Vejam que ele estava usando luvas!

E ainda bem que fizemos essa limpeza... Alguns dias depois aconteceu um fato que me deixou em estado de choque por algumas horas.

Ele estava comendo cereais e assistindo à televisão. Ele não come os cereais com leite, prefere sequinho mesmo. Só que ele ficava "sacizando" na frente da televisão, acabou derrubando o potinho e os cereais caíram todos no chão.

- Olha aí! Não falei que ia acabar caindo?

Juntei meio por cima o que dava e falei:

- Vai buscar aquela pazinha com a vassourinha (uma coisa ótima que achei no mercado...) pra limpar isso aqui.

- Já vou...

Bem nessa hora começou a passar Power Rangers. Nem mesmo os próprios Power Rangers em pessoa, transformados em Megazord e com espada Ninja em punho conseguiriam tirá-lo da frente da televisão nesse momento, quem dirá eu. Resolvi me poupar o episódio de mais uma discussão e decidi esperar pelo fim do seriado. Deitei no sofá já que não dava pra ficar com as pernas para baixo porque o chão estava cheio de cereais e fiquei olhando para a televisão. Só que eu estava exausta, Power Rangers não é bem o tipo de programa que mantém a minha atenção e, além do mais, eu já tinha visto aquele mesmo episódio umas quinze vezes, no mínimo. Eu tinha certeza que não ia ser daquela vez que o "do mal" ia ganhar do "do bem". Acabei cochilando. Quer dizer, caí nos braços de Morfeu valendo! Quando acordei, tinha acabado o Power Rangers e já estava quase terminando o Sonic que passa depois. Olhei para o chão e ele estava limpinho.

- Que legal Fê! Você já varreu o chão?

- Não varri.

- Como não varreu? Está limpinho...

- Eu lambi.

- O quê?!!!! Você está brincando, não está?

- Não. Eu lambi mesmo.

Pela cara dele, eu vi que era verdade. Fiquei catatônica por alguns segundos. Ainda bem que a gente tinha lavado o chão com água sanitária uns dias antes. Acho que foi por isso que ele se sentiu confiante. Era ele mesmo quem tinha limpado aquela parte do chão!

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