sexta-feira, setembro 10, 2004

E lá se vão trezentos e sessenta e seis dias. Um ano inteirinho (e bissexto) de ausência! Hoje eu gostaria de falar um pouquinho sobre esse nosso ano e acho que a melhor forma de descrever os períodos pelos quais passamos é usar a imagem da árvore que vemos da nossa sacada aqui de casa.

Chegamos neste apartamento no dia 1º de outubro. E foi a partir daí que a convivência com a nossa árvore começou. Antes disso, não temos uma imagem definida do que passamos. Era a surpresa e o medo. O encantamento e o desespero. O cansaço e a esperança. A segurança e a incerteza. Tudo ao mesmo tempo. Os vinte primeiros dias foram intensos e confusos. Tudo estava por ser feito e não sabíamos nem por onde começar. Não conhecíamos nada, nem ninguém. Não sabíamos como resolveríamos as coisas. Mas elas foram se acomodando, se ajeitando. Temos certeza de que as muitas orações que sabemos que foram feitas em nossa intenção fizeram a diferença. E por elas, queremos agradecer.

Quando enfim nos instalamos, o outono estava começando. E é a partir daí que podemos usar nossa árvore para descrever nosso caminho:


Tudo nos parecia lindo. A cidade, os lugares, as perspectivas. Nós também estávamos leves como as folhas que caíam das árvores. Ainda estávamos descobrindo coisas, meio sem consciência da grande mudança nas nossas vidas. Claro que percebíamos diferenças. Mas elas não pareciam tão grandes, nem tão profundas. Ainda guardávamos muito do nosso estilo de vida no Brasil e procurávamos reproduzir aqui o que fazíamos aí. Entretanto, o outono tem uma beleza curta que antecede a dificuldade do inverno. E assim foi conosco.


As folhas caíram todas. A árvore ficou nua, seca. Os dias eram curtos e as noites intermináveis. A garoa e o vento castigavam sem parar. Tudo era difícil, qualquer deslocamento era sofrido. Esperar nos pontos de ônibus com o vento cortando, não poder sair de casa a qualquer momento, muitas vezes não poder sair em momento algum para evitar uma crise de bronquite no Felipe.

O mês de dezembro foi se aproximando do fim e as coisas foram ficando ainda mais difíceis. Crises em seqüência do Felipe, a minha internação, toda a incerteza daqueles dias de hospital que antecederam ao parto, um Natal melancólico... A presença dos meus pais aqui foi o que segurou um pouco o nosso clima.

Janeiro chegou e trouxe a boa notícia de um carro para nós. Aqui esse é um item fundamental para uma família. Os ônibus não circulam à noite (ou circulam muito raramente) e o frio desanima qualquer projeto de sair de casa. Tínhamos de pensar com antecedência em tudo o que precisaríamos do mercado, porque o serviço de entrega era caro e só funcionava até uma certa hora. Entretanto, mesmo a chegada do carro não conseguiu melhorar significativamente o nosso astral: eu sofria da conhecida depressão pós-parto, o Vidal estava tendo de recomeçar o trabalho na universidade, o Felipe ainda sofria com a cantina da escola e só comia pão seco, de pé encostado na parede. A Ana Luíza não disse nada, mas acho que também estava meio injuriada porque tinha saído daquele ambiente quentinho e protegido direto para os dias cinzentos de inverno...

Para coroar, fomos confrontados à dura realidade da nossa nova condição financeira. Como eu disse antes, levávamos aqui o mesmo estilo de vida do Brasil. Claro que acreditávamos que estávamos controlando as coisas, mas algumas contas nos revelaram que a situação era bem outra. Tínhamos uma dívida a acertar e ainda muitos meses aqui para planejar. Tivemos de realmente mudar de atitude, elaborar uma estratégia para equilibrar as nossas contas. E com isso, o tempo foi passando e as coisas começaram a entrar nos eixos. O ar, aos pouquinhos, foi ficando mais leve.


A primavera chegou e, mesmo que com ela não tenha vindo o calor que esperávamos, vieram as flores em abundância. Terminamos de pagar nossa dívida, aprendemos a controlar melhor nossas despesas. Além disso, o Felipe passou a almoçar na escola, fez amigos, começou a tagarelar em francês. Minha depressão foi embora junto com alguns bons quilinhos que tinham sobrado do parto (não todos, infelizmente) e o trabalho do Vidal engrenou. Ele teve um artigo aceito, outro recusado, mas mesmo assim, boas perspectivas para a tese, o que é, afinal, o grande motivo de estarmos aqui.

Os dias ficaram mais longos, começaram a acontecer os piqueniques nos parques, as pessoas ficaram mais alegres, tinha a expectativa do verão no ar. E tinha também o planejamento da nossa viagem de férias!


O verão levou as flores da nossa árvore embora, mas trouxe a serenidade. Enfim nos sentimos tranqüilos, mais à vontade, com menos sobressaltos.

Durante todo esse ano, estivemos muito sensíveis. A impressão é de andávamos sempre sobre o fio de uma navalha. A qualquer momento poderia acontecer uma coisinha qualquer que nos machucaria, que seria difícil de suportar. É bom viver intensamente a vida, mas também é muito bom ter sossego e rotina.

Não dá pra contar quantas coisas aprendemos aqui. Desde as práticas como montar móveis (no caso do Vidal) ou fazer faxinas (no meu caso), quanto aquelas mais impalpáveis como a grande importância das pessoas na nossa vida (vocês não imaginam o quanto nos fazem falta), o quanto são essenciais os serviços sociais em um país ou como é maravilhoso o clima de Curitiba!

É claro que sentiremos falta de muitas coisas daqui quando formos embora: da segurança, das pessoas que conhecemos, do ritmo de vida. Mas se antes de virmos já dizíamos que não tínhamos vontade de ficar para sempre longe do nosso país, agora temos certeza. Várias coisas aqui são muito legais, algumas são melhores do que no Brasil (especialmente aquelas ligadas aos serviços públicos de saúde e educação), mas não há nada como a casa da gente, o nosso canto. Cheio de defeitos, é claro, mas nosso.

Se essa experiência acabasse hoje, já teria valido a pena. Mas ela ainda não acabou e ainda nos restam quase dois anos por aqui. Nesse momento as folhas das árvores estão começando a ficar amarelas e a cair. Mais um outono está chegando. Sabemos que depois virá o inverno, mas ele é necessário para que possa haver uma nova primavera. Depois o verão... E assim o ciclo continua.

Não consigo nem imaginar como será nosso próximo ano, mas acho que ele será mais fácil. Somos otimistas incorrigíveis!


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